"Cilício e chicotadas não são nada comparados com a violência psicológica"
João (nome fictício) levantou-se depois de ter relações sexuais com a namorada e pegou nos seis bagos de milho que trazia num estojo de camurça. Colocou-os em forma de triângulo e ajoelhou-se sobre eles a rezar qualquer coisa parecida com o ave-maria. A mortificação corporal, como esta contada ao DN, é dos rituais do Opus Dei mais contestados por algumas fações da Igreja Católica e aquele que mais choca a sociedade.
Ajoelhar-se sobre o milho não é, no entanto, a prática mais comum. E muito menos depois do sexo, até porque os numerários, as numerárias e os agregados são celibatários. As penitências são incentivadas de forma que os membros da obra sofram como Jesus sofreu, sendo o ato entendido como uma dádiva a Deus.
Por norma, os membros, principalmente os numerários, são incentivados a utilizar o cilício duas horas por dia (exceto ao domingo). Ou seja: enquanto fazem as simples tarefas do quotidiano, utilizam uma espécie de cordão de arame preso à volta da coxa, cujos espigões se cravam na pele. Quando retirado, o sangue encarrega-se de tatuar a perna. A prática não é obrigatória, mas é aconselhada e bem-vista no seio do Opus Dei.
Outro polémico ritual é massacrar as nádegas (a chamada "disciplina") com um pequeno chicote de cordas com nós cegos nas pontas - prática realizada uma vez por semana. O responsável pelo Gabinete de Comunicação do Opus Dei, Pedro Gil, desvaloriza as penitências dizendo que "não são obrigatórias e nada têm a ver com as chicotadas relatadas no livro e no filme de Dan Brown". "Os membros certamente que se riem quando ouvem essas descrições", acrescenta, confirmando a existência destes rituais.
O contabilista do Porto João Pinto - que "apitou" com 22 anos e foi agregado do Opus entre 1976 e 1992 -, aceitou dar a cara para dizer que praticava a mortificação corporal, que diz não ser "uma coisa do outro mundo", admitindo, no entanto, que era incentivada.
Um outro ex-membro, que não se quis identificar, explicou ao DN que saiu do Opus Dei por perceber que "o que era praticado dia a dia chocava com os direitos fundamentais da pessoa humana".
No entanto, o antigo numerário considera que "quaisquer chicotadas ou cilícios não eram nada comparados com a violência psicológica a que os membros são sujeitos". E conclui: "Sentíamos que éramos uns zero à esquerda com todas as obrigações que tínhamos e com a liberdade que não tínhamos" (ver texto na página ao lado). O mesmo ex-membro utiliza uma metáfora para explicar como são tratados os membros numerários nos centros: "São como os alimentos no supermercado que são colocados em câmaras com pouco oxigénio para se aguentarem mais."
Os chicotes e os cilícios podem ser pedidos aos membros da obra ou comprados, por exemplo, no Convento de Santa Teresa em Coimbra. A irmã Lúcia praticava este tipo de mortificações, que continuam a ser incentivadas entre as carmelitas coimbrãs. Podem ainda ser adquiridos na Internet e custam entre 31 e 101 euros.
A mortificação corporal não se fica, no entanto, pelo cilício e a disciplina. Há pequenas mortificações praticadas no dia a dia, como por exemplo beber o café sem açúcar, não comer entre as refeições ou não pôr manteiga no pão. Messias Bento, atual membro supranumerário, defende que a mortificação corporal "é um ato voluntário que cada um quer oferecer a Deus" e considera que "ninguém se devia impressionar com este tipo de práticas". E questiona: "Se ninguém se impressiona que se façam dietas e sacrifícios para que se fique elegante, porque se hão de impressionar que se façam coisas similares como ofertas a Deus?" Messias Bento dá ainda outros exemplos de mortificação: "Para um fumador, pode ser não fumar durante a manhã ou não beber vinho a uma das refeições." O antigo juiz ressalva ainda que "as mortificações não são feitas por puro masoquismo, são uma oferta a Deus".
Estas práticas de mortificação estão longe de ser consensuais na Igreja Católica e, mesmo no Opus Dei, nem todos as defendem. O deputado Mota Amaral confessou ao DN que, embora as compreenda, não é adepto deste tipo de práticas: "Sou mais pela alegria. Pela manhã de Páscoa."